Simulação Escrita - Advogados de Sandokan da Ultrapassagem de prazos

 

Direito Administrativo II – 2024/25

Parecer Jurídico – Prazos Ultrapassados pela Administração Pública

Na sequência de uma omissão administrativa de resposta, o seguinte parecer tem por objeto a apreciação jurídico-contenciosa da ação da Administração Pública face ao pedido de autorização de residência apresentado por Sandokan da Silva, em 5 de maio de 2020. Tal omissão ocorre no contexto do procedimento previsto no art. 88º/2 da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, com a redação introduzida pela Lei nº 102/ 2017, de 28 de agosto, à luz do incumprimento dos deveres legais de decisão dentro dos prazos estipulados por parte da Administração Pública.

Ao abrigo do referido preceito legal, o legislador consagra os direitos do cidadão estrangeiro que se encontre em território nacional. Assim, ao exercer atividade profissional e detendo vínculo laboral válido, o cidadão deve solicitar a regularização da sua situação por via da obtenção de autorização de residência. Esta prerrogativa visa garantir a inserção jurídica e social de trabalhadores migrantes, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e da integração.

A análise da conduta omissiva da Administração, à luz dos parâmetros normativos e constitucionais aplicáveis, demonstra, assim, não só a sua desconformidade legal, como a necessidade de tutela judicial efetiva para restabelecer os direitos violados e assegurar o cumprimento da ordem jurídica administrativa.

No presente caso, o requerente Sandokan da Silva apresentou, em 5 de maio de 2020, um pedido de autorização de residência, encontrando-se desde então a aguardar decisão por parte da entidade administrativa competente. Contudo, à data da elaboração deste parecer, volvidos mais de quatro anos, a Administração não proferiu qualquer decisão, o que configura uma clara e inadmissível ultrapassagem do prazo legalmente fixado para o efeito.

Nos termos do artigo 82.º da referida Lei n.º 23/2007, os pedidos de autorização de residência “são decididos no prazo de 90 dias, contados a partir da data da sua apresentação”. Esta norma substantiva estabelece um prazo perentório para a prática do ato administrativo ao vincular a Administração à sua observância. Tal prazo deve ser interpretado em articulação com o artigo 128.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que estabelece, no seu n.º 1, que “os procedimentos administrativos devem ser concluídos mediante decisão expressa, a proferir no prazo máximo fixado na lei substantiva aplicável ou, na sua falta, no prazo geral de 90 dias”.

Resulta assim que a Administração está vinculada a proferir uma decisão dentro do prazo legal, sob pena de incorrer numa omissão ilegal de pronúncia. A ultrapassagem injustificada desse prazo configura uma violação do dever jurídico de decidir, previsto no artigo 13.º do CPA, segundo o qual “os órgãos da Administração Pública têm o dever de decidir no prazo legalmente fixado”.

Acresce que esta omissão por parte da Administração constitui também uma violação dos princípios gerais da atividade administrativa, desde logo do Princípio da Boa Administração[1], do Princípio da Legalidade[2], e do Princípio da Celeridade[3].  Estes princípios impõem à Administração uma conduta diligente, eficiente e orientada para a efetivação dos direitos dos particulares, sendo a morosidade administrativa, sobretudo quando injustificada, contrária ao dever de boa gestão e de respeito pelos direitos dos interessados.

É ainda importante referir que o silêncio da Administração viola também o Princípio da Confiança (10. ° CPA) visto que o mesmo impõe que a Administração atue de forma coerente, respeitando as expectativas legítimas que criou nos particulares. Ou seja, no caso, Sandokan tinha a expectativa jurídica que a Administração respondesse ao seu pedido dentro do prazo legal.

Além disso, no caso concreto, não existem elementos que justifiquem legal ou materialmente a omissão de decisão. A eventual reorganização administrativa, com a substituição do SEF pela AIMA[4], não suspende o prazo procedimental nem constitui causa legítima para o não cumprimento de prazos legais. A continuidade jurídica da função administrativa prevalece sobre qualquer alteração orgânica, sob pena de se admitir a paralisia do Estado de Direito em face de meras contingências administrativas.

É prova disso o Decreto-Lei n. º 37-A/2024, de 3 de junho, que altera a Lei n. º 23/2007, de 4 de julho, procedendo à revogação dos procedimentos de autorização de residência assentes em manifestações de interesse.

O presente Decreto-Lei não se aplica aos procedimentos de autorização de residência iniciados até 3 de junho de 2024. Sandokan apresentou o seu pedido ao SEF a 05/05/2020, pelo que a lei aplicável ao caso concreto é a Lei n.º 102/2017.

A Administração, ao não cumprir o prazo fixado no artigo 82.º da Lei n.º 23/2007, violou diretamente uma norma legal imperativa e, de forma reflexa, um conjunto de deveres constitucionais e administrativos. Esta omissão é juridicamente relevante, pois invalida a conduta administrativa e legitima o recurso ao contencioso administrativo, nomeadamente através da ação de intimação para a prática de ato devido, nos termos do artigo 128.º, n.º 2 do CPA e do artigo 103.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Em suma, a ultrapassagem do prazo legal por parte da Administração constitui uma ilegalidade grave, com consequências jurídicas relevantes, que justifica a intervenção dos tribunais administrativos para assegurar a tutela dos direitos do requerente e o restabelecimento da legalidade administrativa violada.

No que toca ao argumento da Administração Pública que “alega a falta de apresentação dos documentos exigidos pelo requerente dentro dos prazos legais”, será chamada uma testemunha como meio de prova. A patroa de Sandokan irá testemunhar para comprovar que todos os documentos foram devidamente entregues, dentro do prazo.

Desta forma, a Administração invoca, em sua defesa, a falta de entrega dos documentos necessários dentro dos prazos legais como causa justificativa da ausência de decisão sobre o pedido de autorização de residência apresentado por Sandokan da Silva a 5 de maio de 2020.

Todavia, essa alegação não resiste a uma análise jurídica rigorosa. Em primeiro lugar, a versão dos factos apresentada por Sandokan confirma que os documentos exigidos foram entregues no momento da apresentação do pedido, sem que tenha sido posteriormente solicitada qualquer regularização adicional. 

Mesmo que assim não fosse, de acordo o artigo n. 108º/1 do CPA, verificando-se a falta de algum dos documentos exigidos, seria um dever da Administração convidar o requerente a suprir as deficiências existentes, nos termos do artigo n. 117º CPA. Não se encontra prova de que tal notificação tenha sido efetuada. A simples invocação genérica de “documentos em falta”, desacompanhada de qualquer demonstração concreta de quais os documentos ausentes e da conceção de um prazo para a regularização constitui uma violação do princípio da colaboração com os particulares, consagrado no artigo n. 11º do CPA.

Portanto, não só não foi feita prova da alegada falta de documentos por parte do requerente, como, a existirem omissões, competia à Administração cumprir o seu dever de fazer suprir as deficiências apresentadas. A ausência dessa diligência essencial invalida o argumento da Administração, não podendo esta transferir para o particular a responsabilidade pela sua omissão de decisão.

No entanto, é ainda importante referir que a figura do deferimento tácito pode ser invocada subsidiariamente, nos termos do n.º 1 do artigo 130.º do CPA, sempre que tal resulte da lei, de regulamento ou da natureza do ato em causa. Esta possibilidade é admissível especialmente quando a omissão de decisão por parte da Administração implique um sacrifício desproporcionado dos direitos fundamentais do particular.

A jurisprudência nacional, em especial a do Supremo Tribunal Administrativo, tem vindo a reconhecer a aplicabilidade do deferimento tácito em contextos semelhantes, designadamente quando o requerimento se encontra devidamente instruído com todos os documentos exigidos e a Administração permanece inativa durante um período prolongado — por vezes, durante vários anos.

A nível da doutrina, o artigo de Vasco Pereira da Silva e Tiago Macieirinha[5] desenvolve uma crítica densa ao conceito de ato administrativo tácito, especialmente em contextos onde estão em jogo direitos fundamentais e princípios constitucionais relevantes, como o pluralismo na comunicação social. Os autores defendem que o deferimento tácito é uma ficção legal precária, que não pode ser equiparada a um verdadeiro ato administrativo, nem goza da sua estabilidade, justamente por não resultar de qualquer ponderação dos interesses públicos e privados no caso concreto. Para eles, a sua aplicação representa, frequentemente, uma ameaça à realização do interesse público, à imparcialidade e às garantias constitucionais como a fundamentação e a audiência dos interessados. Nessa medida, entendem que o deferimento tácito não é constitucionalmente admissível em procedimentos que envolvam direitos fundamentais, como a concentração de empresas na área da comunicação social, nem pode ter os mesmos efeitos de um ato administrativo expresso.

Esta visão contrasta profundamente com a defendida por autores como Diogo Freitas do Amaral[6], Mário Aroso de Almeida, Carlos Blanco de Morais e Ana Rita Gil[7]. Para estes, o deferimento tácito é um instrumento legítimo de tutela dos particulares face à inércia administrativa, devendo ser interpretado como um verdadeiro ato administrativo tácito, válido e eficaz quando os requisitos legais estão preenchidos. Freitas do Amaral reconhece que o silêncio pode equivaler à prática de um ato, desde que a lei o preveja expressamente, e considera que essa figura visa defender os particulares da omissão da Administração, promovendo a segurança jurídica. Mário Aroso de Almeida, por sua vez, admite que se trata de uma presunção legal de deferimento, mas que deve produzir os efeitos típicos do ato administrativo constitutivo de direitos, salvo por razões fundadas e ponderadas posteriormente. Ana Rita Gil, especialmente no domínio da imigração, afirma que o deferimento tácito funciona como garantia de acesso a direitos fundamentais, quando a Administração falha no seu dever de decidir, como ocorre frequentemente nos pedidos de autorização de residência.

A tensão entre estas duas posições é evidente: para Pereira da Silva e Macieirinha, o deferimento tácito compromete o interesse público e não se pode equiparar a um ato jurídico pleno, sobretudo em contextos constitucionais sensíveis; já para Freitas do Amaral e os demais autores referidos, trata-se de um mecanismo legítimo de eficácia administrativa e proteção dos direitos dos administrados, cuja validade decorre da própria letra da lei (como o artigo 130.º do CPA), e da sua finalidade de compensar a omissão estatal.

Esta divergência ilustra bem o debate atual sobre o papel da Administração: se deve ser compreendida como ativamente garantidora de ponderação e deliberação expressa, como sustentam os primeiros autores, ou se pode ficar vinculada aos efeitos jurídicos de sua própria omissão, conforme defendem os segundos, especialmente quando essa omissão prejudica direitos fundamentais dos administrados.

No que respeita ao argumento apresentado pela Administração — que invoca a “modificação recente das regras substantivas que elimina a automaticidade na atribuição da residência, a sobrecarga de pedidos apresentados e a falta de condições materiais para os resolver” como justificação para o incumprimento dos prazos legais — importa recordar que a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, consagra o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

O artigo 7.º/1 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, prevê que o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.

A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada, nos termos do artigo 10.º/1 do mesmo diploma, pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor. Existe uma presunção de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos, nos termos do artigo 10.º/2.

É evidente que a mudança do SEF para a AIMA não foi uma transição pacífica. Conseguimos compreender que essa situação tenha agravado os problemas de resposta já existentes, sobrecarregando os pedidos apresentados e piorando a celeridade nos processos. No entanto, não aceitamos que a má gestão, mau planeamento, má precaução e pouca diligência da Administração Pública seja utilizada como desculpa para que a mesma não seja responsabilizada.

Defendemos que se trata de uma omissão culposa, visto que a Administração não agiu com a diligência que lhe era exigida e que a conduta em causa não seria suscetível de ser praticada por um “bonus pater família”. A Administração Pública tem de ser responsabilizada pelos danos que causou ao Sr. Sandokan, indemnizando o requerente de forma proporcional aos bens sofridos.

Face ao exposto, conclui-se que a atuação omissiva da Administração Pública no caso em análise viola gravemente os deveres legais e constitucionais que a vinculam à decisão dentro de prazos legalmente estabelecidos. O pedido de autorização de residência apresentado por Sandokan da Silva, em 5 de maio de 2020, permanece sem resposta, mais de quatro anos após a sua apresentação, em manifesta desconsideração dos artigos 82.º da Lei n.º 23/2007 e 128.º e 13.º do CPA.

Acresce que a alegação de falta de documentos não foi devidamente comprovada e, mesmo que existisse, caberia à Administração promover a sua regularização, nos termos do artigo 117.º do CPA. A ausência de resposta administrativa traduz-se numa omissão ilegal, lesiva dos direitos fundamentais do requerente.

Em suma, a ultrapassagem injustificada do prazo legal pela Administração no presente caso não apenas consubstancia uma ilegalidade formal e material, como impõe uma resposta judicial célere e eficaz, destinada a repor a ordem jurídica violada e a garantir os direitos fundamentais do requerente.

 

 

 

Realizado por:

Catarina Gomes, nº 69809;

Carolina Teixeira, nº 69535;

Daniel Dias, nº 69762;

Leonor Carpinteiro, nº70068;

Matilde Rodrigues, nº 69894;

PB10.



[1] Consagrado no artigo 5.º do CPA e no artigo 266.º/1 da Constituição da República Portuguesa;

[2] Consagrado no artigo 3.º do CPA;

[3] Consagrado no artigo 59.º do CPA;

[4] O Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho, procedeu à extinção do SEF e à criação da AIMA.

[5]Agir não agindo: da insustentabilidade do deferimento tácito” – Vasco Pereira Da Silva e Tiago Macieirinha;

[6] “Curso de Direito Administrativo” – Diogo Freitas do Amaral, VOL II; 2º edição, Almedina, 2011;

[7]A proteção derivada de direitos fundamentais de imigração” – Ana Rita Amaral Campos Gil; outubro de 2015;

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