Catarina Gomes (1), Carolina Teixeira (2), Evelina Sleahtitchi (3), Rafael de Jesus (4), Duarte Rodrigues (5), Mª Margarida Cabral (6)
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA, I.P. (7)), criada pelo Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho, constitui um instituto público (8) integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira, com jurisdição e serviços desconcentrados sobre todo o território nacional, estando sujeito à superintendência e tutela do membro do Governo (9) responsável pelas áreas da igualdade e das migrações. Este instituto público tem como missão fundamental a concretização das políticas públicas nacionais e europeias em matéria de migração e asilo relativas à entrada, permanência, acolhimento e integração de cidadãos estrangeiros em território nacional (10).
Desta agência, criada há pouco mais de um ano, posteriormente à extinção do SEF, já constam mais de 1.500 reclamações (11). Dada a situação de ineficácia, e ao caos que se tem verificado relativamente a este recente instituto, consideramos que a melhor opção para salvaguardar o seu futuro é descartar o modelo atual. Defendemos uma privatização integral do serviço público a entidade privada sujeita a controlo de uma “agência reguladora das migrações”. Isto é, propomos que esta passe a adotar a administração indireta do Estado, sob forma privada. Mais adiante iremos aprofundar a sua natureza jurídica e contextualização, os argumentos a favor da sua privatização, como pode efetivamente ocorrer essa privatização e os argumentos contra este novo modelo que propomos.
A NATUREZA JURÍDICA DA PRIVATIZAÇÃO
A jornada pela procura de soluções para os problemas dos serviços públicos já é longa, e não é de agora que a privatização aparece na calha das opções. Aliás, em 1992 foi criada a “Comissão para a Qualidade e Racionalização da Administração Pública” (12), que tinha por funções: identificar atividades suscetíveis de privatização, enumerar prioridades, descobrir formas e mecanismos de concretização, criar princípios, critérios e metedologias e potencializar a flexibilidade de gestão da Administração. É por isso impossível falar de privatização no contexto português sem ter em consideração esse trabalho desenvolvido (13).
Do relatório elaborado por esta comissão é possível retirar os quatro passos e mudanças que devem ser assumidos, a começar por repensar as missões da Administração, dinamizar novos modelos estruturais, desintervir, e envolver a sociedade (14). Para tal é proposto a privatização como uma das soluções (15). Neste sentido a comissão aponta como vantagens dessa solução a redução do leque de atividades do estado; a diminuição da despesa pública; a criação de receitas a partir do património do estado; o aumento da qualidade (16) e uma valorização da economia pela densificação do tecido privado (17).
A perspetiva apresentada pelos elaboradores do trabalho, parece indicar um distanciamento da “Administração prestadora” e uma aproximação à “Administração garante” (18). No próprio relatório toca-se na perspectiva constitucional, em que a Administração tem por função assegurar e proteger, tendo um papel insubstituível no acesso a serviços básicos e na igualdade de oportunidades. No entanto, no artigo 9º da constituição, as tarefas são elencadas com “garantir”, “proteger” e “assegurar”; em momento algum é definido que tem de ser o estado a desenvolver estas funções, ou que este não as possa delegar. Desta forma, a posição assumida é sim de uma “Administração garante da prestação de serviços” em alternativa à Administração prestadora (19).
Surge ainda uma última pergunta teórica essencial para o entendimento e discussão relativo à solução do problema da AIMA. O que se entende por privatizar?
O professor Sousa Franco procurou responder dividindo a resposta em três (20): Num sentido mais amplo temos a privatização como um “conjunto de políticas de transformação económico-sociais”, em que este confia a privados, a prossecução dos seus fins. São exemplo disso a desintervenção do estado, na ótica do estado mínimo. Num sentido mais intermédio temos a “atribuição de formas e instrumentos privados ao estado”. São exemplos disso a criação de empresas de capital misto, as parcerias público-privadas (ppp´s), ou a simples concessão de serviços, ou os contratos de empreitada e prestação de serviço. Em terceiro temos o sentido mais restrito e puro da privatização; a transferência, por completo, de bens públicos para o domínio privado. Dentro desta categoria, refere ainda que existe a verdadeira e a falsa privatização, e vai mais longe dizendo, que só é efetivamente verdadeira privatização quando “o essencial da propriedade, decisão ou gestão sai da esfera do estado”. Nesta categoria encontramos as sociedades de capital público e as fundações de dotação pública. “Ainda que a atividade seja desenvolvida por privados, não deixa de ser pública”.
No nosso caso concreto, analisaremos a privatização plena da AIMA, ficando esta sujeita ao controlo de uma outra entidade, essa sim, de controlo estadual.
ARGUMENTOS A FAVOR DA PRIVATIZAÇÃO DA AIMA
A privatização integral do serviço público de atendimento da AIMA, transferindo a sua gestão para uma entidade privada sujeita ao controlo de uma agência reguladora das migrações, apresenta uma série de vantagens significativas que podem resolver os problemas estruturais enfrentados atualmente. Esta proposta visa oferecer soluções mais eficazes para o cenário atual de longas filas de espera, falta de organização e dificuldades no acesso ao serviço.
Um dos principais argumentos é a eficiência operacional (21) que o modelo privado pode trazer. As empresas privadas, diferentemente dos órgãos públicos, são movidas pela necessidade de potencializar resultados e reduzir custos, o que as incentiva a encontrar formas de otimizar processos. Esta lógica de eficiência pode traduzir-se na redução do tempo de espera, na utilização mais eficiente de recursos humanos/ tecnológicos e na eliminação de burocracias desnecessárias no atendimento. A entidade privada teria a capacidade de rever e adaptar os procedimentos de maneira mais ágil, sem estar sujeita aos entraves burocráticos frequentemente encontrados no setor público.
Outro benefício claro está na capacidade de inovação e flexibilidade (22). Enquanto o setor público muitas vezes enfrenta limitações de orçamento e dificuldade para implementar novas tecnologias, uma empresa privada pode adotar rapidamente soluções modernas. Isto inclui, por exemplo, plataformas digitais para a marcação de atendimentos, sistemas automáticos de triagem e atendimento remoto por videoconferência, tudo voltado para facilitar a vida dos usuários. Este tipo de inovação não apenas melhora a experiência do cidadão, mas também permite atender um volume maior de pessoas com os mesmos recursos.
O foco em resultados e metas é uma vantagem adicional do modelo privado.
O contrato baseado na empresa privada pode estabelecer objetivos claros e mensuráveis, como tempos máximos de espera, níveis de satisfação do usuário e padrões de qualidade no atendimento. Diferentemente de serviços públicos tradicionais, onde a responsabilização muitas vezes é diluída, uma empresa privada é diretamente responsável por alcançar essas metas. Caso não o faça, pode enfrentar penalidades contratuais ou até mesmo a rescisão do contrato (23). Esta conformidade entre responsabilidade e desempenho garante um serviço mais fidedigno e responsável.
A agilidade na resolução de crises também é um ponto de destaque. Uma entidade privada tem maior liberdade para disponibilizar recursos adicionais em momentos de maior procura, como a contratação de funcionários temporários, a expansão de horários de atendimento ou a instalação de novos equipamentos. No setor público, essas medidas podem levar semanas ou meses para serem implementadas devido a processos administrativos complexos. A agilidade do setor privado assegura que os problemas sejam resolvidos rapidamente, minimizando o impacto sobre quem necessita destes serviços.
Por fim, este modelo seria supervisionado por uma agência reguladora especializada (24), o que iria proporcionar um equilíbrio entre autonomia e controlo público. Esta agência teria o papel de fiscalizar constantemente o desempenho da empresa, garantindo que os padrões de qualidade e acessibilidade sejam mantidos. Além disso, o governo ainda poderia intervir, por meio da agência, caso houvesse falhas graves ou abusos por parte da entidade privada, protegendo os direitos dos cidadãos e o interesse público.
Em suma, a privatização integral do serviço da AIMA oferece uma solução prática para problemas que há muito tempo afligem os seus utentes. Ao trazer eficiência, inovação, responsabilidade e agilidade. O modelo privado, devidamente supervisionado por uma agência reguladora, tem o potencial de transformar um serviço ineficaz e sobrecarregado num sistema moderno e acessível, adequado às necessidades da população.
A PRIVATIZAÇÃO NUM PLANO PRÁTICO
A privatização integral da AIMA, sujeita a uma entidade reguladora das migrações, faz com que esta se insira na Administração Indireta sob forma privada, como já referido inicialmente.
O exercício de atividades consideradas essenciais, dos mais variados setores da administração, pode ser confiado, segundo decisões de carácter jurídico-público, a entidades de direito privado, o que contraria a ideia tradicional de que as entidades públicas são os principais protagonistas da atividade administrativa.
Uma das questões mais relevantes relativamente à nossa posição, consiste na forma e modo de aplicação da mesma, ou seja, que alterações iriam nortear a AIMA; e como seria a relação entre esta e a agência reguladora das migrações?
É necessário esclarecer que o modus operandi seria o mesmo: a persecução do interesse público, respeitando os direitos dos particulares e os princípios do estado de direito democrático como o princípio da igualdade e o do princípio da subsidiariedade (25).
Em primeiro lugar , seria necessário alterar o estatuto jurídico da AIMA, de forma a que esta pudesse ser considerada uma entidade privada, sujeita ao controlo de uma entidade reguladora das migrações. Posteriormente, o Estado definirá com a AIMA, em especial com os seus representantes, os objetivos a alcançar pela mesma, exercendo o seu poder de superintendência, e esta estaria sujeita ainda a um poder de tutela por parte do Estado, que controlaria a legalidade dos atos praticados pela AIMA, o que afasta a ideia de que a possível nova administração da AIMA recorra a todos os meios legais e ilegais para a obtenção de mais lucros. Com a privatização da entidade, e indo ao encontro daquilo que é praticado pelo setor privados de outras áreas, a AIMA seria alvo de uma “revolução tecnológica” - a mesma iria ter na sua pose novos equipamentos que pudessem acelerar o processo de trabalho de entidade, aumentar a sua eficiência, e por consequência diminuir a quantidade de filas à porta do estabelecimento da AIMA.
A modernização do setor, iria exigir a contratação de trabalhadores qualificados para lidar com tal tecnologia, o que iria gerar mais emprego e um maior grau de especialização dos trabalhadores da AIMA, o que iria por consequência beneficiar aqueles que chegam a Portugal em busca de uma vida melhor.
Por fim, em situações de grande emergência, como a do caso enunciado, a AIMA teria agora uma maior flexibilização, permitindo que por exemplo, a mesma crie centros móveis que facilitam a descentralização geográfica do setor, o que permite reduzir as grandes filas às portas da agência. Medidas como esta podiam ser feitas igualmente pelo Estado, porém este estaria sujeito a um conjunto interminável de normas que iriam atrasar a implementação das mesmas, dado ser “uma máquina burocrática pesada e pouco flexível”. A agência reguladora das migrações teria sempre uma palavra a dizer neste processo, é importante não esquecer isto, uma vez que, qualquer norma que seja aplicada, terá sempre a ideia de que tem de cumprir com os parâmetros estabelecidos pela lei e, por consequência prosseguir o interesse público, pois se tal não se suceder, devido ao forte controlo da agência reguladora das migrações, a administração da AIMA seria chamada à responsabilidade.
ARGUMENTOS CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA AIMA
Contra a privatização de um serviço público são recorrentes dois argumentos principais, nomeadamente: a perda de controlo direto do Estado, dado que deixaria de estar sobre a Administração e fiscalização direta do mesmo, bem como a ideia permanente do lucro em detrimento da qualidade e prossecução do interesse público (26), princípio primário da Administração.
Quanto ao primeiro argumento exposto, deve relevar-se que a nossa proposta inclui não somente a privatização da AIMA, como também uma agência de regulação das migrações. Isto permitiria que a AIMA prosseguisse a sua função enquanto entidade privada (com todas as vantagens que isso acarreta, como já analisado) tendo, no entanto, fins públicos e estando sob constante vigia de uma agência reguladora.
Relativamente ao segundo argumento, (do detrimento do interesse público face ao lucro), como característica “essencial” das entidades privadas, este levanta dois problemas.
Em primeiro lugar assume-se que a prossecução de fins públicos não pode coexistir com a de fins privados (ideia errónea). A verdade é que a procura de reduzir gastos e aumentar receita não só não é sinal de abandono da prossecução primária do interesse público, como é, ou devia ser, um objetivo, no mínimo, secundário das entidades públicas. Em segundo lugar, ao considerar o setor privado desligado de prosseguir interesse público, estamos a ignorar o “Terceiro setor” da economia portuguesa (27), ou “economia social” (28) como lhe chama o legislador (29). Enquanto que os primeiros dois (privado e público) têm fins muito distintos e próprios, como já visto, o terceiro setor, que sendo privado, procura desinteressadamente o bem estar social, sendo essencial para a nossa ordem pluralista e democrática. Aliás, no contexto de privatização, sem informação em contrário, nada impede que a nova AIMA assuma os moldes do terceiro setor (30), revestindo a forma de associação humanitária, por exemplo, ou de pessoa coletiva privada de utilidade pública administrativa (31).
Deste modo, é fácil perceber que dificilmente se encontrarão obstáculos fáticos à proposta de privatização da agência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO
A AIMA trata de promover a integração de migrantes, gerir processos migratórios, oferecer proteção, através de suporte jurídico e administrativo, e ainda combater a discriminação e promover a igualdade. Como foi ilustrado, tal não é possível pelos variadíssimos atrasos e de uma falta de eficiência por parte do setor público que resulta no sofrimento de muitas pessoas à procura de se estabilizarem. A AIMA trabalha com o que para a nossa sociedade tem um valor intocável e constitucionalmente garantido, a dignidade humana de pessoas estrangeiras com direito a asilo (32).
Pela sua extrema importância e pelos inúmeros percalços resultantes de uma Administração Pública burocratizada e lenta, é de considerar a privatização como modelo de algo que realmente satisfaça as necessidades das pessoas.
A privatização da AIMA, I.P. teria como contra argumentos naturais uma perda direta de controlo do Estado. No entanto, como analisado, estaria sujeito ao controlo de uma agência de migração. O segundo argumento prende-se à ideia tão associada a privados (sobre a priorização do máximo lucro face ao interesse público). Como procurámos esclarecer neste trabalho, estes argumentos podem ser refutados, e além do mais, afastados pelas vantagens que realmente nos trazem a privatização, como a eficiência operacional, a capacidade de inovação e flexibilidade, o foco em resultados e metas e a agilidade na resolução de crises.
Concluindo, a melhor solução para satisfazer o objetivo da AIMA passa por uma nova forma de administração, privada, que apresente uma maior eficiência em vez de entraves aos cidadãos.
Notas de rodapé:
1 - Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, Subturma 10 24/25
2 - Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, Subturma 10 24/25
3 - Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, Subturma 10 24/25
4 - Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, Subturma 10 24/25
5 - Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, Subturma 17 24/25
6 - Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, Subturma 10 24/25
7 - Doravante, AIMA
8 - Lei Quadro dos Institutos Públicos nº 3/2004 de 15 de Janeiro
9 - Art. 41 e 42 da Lei Quadro dos Institutos Públicos
11 - Artigo do Jornal Público, “AIMA termina primeiro ano de existência com 1.750 reclamações no Portal da Queixa”, de 19 de Novembro de 2024, 22:58
12 - Criado pela Deliberação do Conselho de Ministros nº14-DB/92, de 21 de abril.
13 - O relatório da comissão foi publicado em 1994, com o nome: “Renovar a Administração”
14 - “Renovar a Administração” - pp.9 a 10
15 - Sendo a outra o controlo de despesas públicas.
16 - Pela introdução de concorrência.
17 - “Renovar a Administração” - p.57
18 - “Renov…” - p.38
19 - “Renov…” - p.83
20 - ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO, prefácio a “A Fiscalização Financeira do Setor Empresarial do Estado por Tribunais de Contas ou Instituições Equivalentes”, pp 15 a 17.
21 - Art. 266/1 CRP, através da prossecução do interesse público
22 - Princípio da Subsidiariedade, art. 6/1 CRP - permite que o Estado atribua a entidades privadas a execução de serviços que possam ser realizados de forma mais eficiente por terceiros, desde que garantido o controlo público e o respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos.
23 - Art. 281 CCP
24 - Art. 267 CRP
25 - V. art. 6º e 13º CRP
26 - V. artigo 266.º CRP
27 - Classificação anglo-saxónica
28 - Previsto na Lei n.º 30/20 de 8 de maio; V. art. 4.º as instituições económicas que prosseguem fins públicos.
29 - Cf. Lei nº 30/2013
30 - Art.4º, h) e Art.5º, e)
31 - Cf. Lei quadro das pessoas colectivas de utilidade pública – Lei n.º 36/2021
32 - V. art. 33.º/8 CRP
Referências:
CABO, SÉRGIO GONÇALVES DO (1993). A Fiscalização Financeira do Setor Empresarial do Estado por Tribunais de Contas ou Instituições Equivalentes - Prefácio de ANTÓNIO SOUSA FRANCO. Lisboa. Tribunal de Contas.
Comissão para a. Qualidade e. Racionalização da Administração Pública. (1994). Renovar a Administração (Deliberação do Conselho de Ministros nº14-DB/92, de 21 de abril). Presidência do Conselho de Ministros.
ESTORNINHO, MARIA JOÃO (1996). A Fuga para o Direito Privado - Tese. Almedina.
Comentários
Enviar um comentário