Atos Automatizados na Administração Pública: Riscos, Responsabilidade e Segurança Jurídica

 



Atos Automatizados na Administração Pública: Riscos, Responsabilidade e Segurança Jurídica

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Martim Carrilho Dias*

 

Sumário: I-Enquadramento; II-Conceito de ato administrativo; II.I- O ato administrativo automatizado e a sua vulnerabilidade jurídica; III- A responsabilidade extracontratual do Estado no Ordenamento jurídico Português; III.I-Imputação da Responsabilidade nos atos administrativos automatizados; V- Análise Jurisprudencial  VI- Conclusões. 

 

 

Resumo: No âmbito da unidade curricular de Direito Administrativo II, sob a regência do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, fomos desafiados pela Professora Beatriz Garcia a desenvolver um tema para o aprofundamento dos conhecimentos sobre a realidade que foi, é e será o Direito Administrativo. Desta forma, o presente trabalho tem por objeto a problematização da responsabilização das decisões administrativas automatizadas. São já incontáveis as entidades públicas que recorrem a atos administrativos informáticos que, pelas suas características transportam eficiência, economicidade e celeridade à Administração Pública. Nestes termos, problematiza-se a questão da responsabilidade civil extracontratual por danos decorrentes do recurso a estes meios na Administração Pública. De forma a condensar o  trabalho à procura de uma solução para o problema exposto, focar-nos-emos em explicitar o instituto da responsabilidade civil por facto ilícito, ficando à disposição do leitor a abordagem das outras diferentes perspetivas. 

 

 

Palavras-Chave: Ato administrativo automatizado; Responsabilidade civil extracontratual do Estado; Informatização; Procedimento Administrativo. 

I. Enquadramento 


O direito, e particularmente o Direito Administrativo, não estão imunes às transformações decorrentes da digitalização. Estas transformações são, historicamente, uma realidade inevitável no contexto da atividade administrativa, suscitando-se, no que concerne ao alcance jurídico promovido pela sua implementação, inúmeras dúvidas e questões jurídicas de relevo, entre elas a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas. Neste seguimento, gerou-se uma discussão em torno de questões relativas à utilização de tecnologia na relação que se estabelece entre a Administração e os particulares. Estaremos para lá da Administração infraestrutural? A legislação Administrativa, e mais concretamente o Código do Procedimento Administrativo (doravante, CPA) reconhece a extrema e crescente relevância da regulação dos comportamentos automatizados, consagrando-lhe uma atenção redobrada.  Ainda assim, poderá censurar-se algumas considerações, tendo em conta que, por um lado, deixa de fora os comportamentos automatizados mecânicos, cingindo-se aos de origem eletrónica, e por outro, prevalece a visão de lidar com a automatização eletrónica enquanto mero instrumento de comunicação entre a Administração Pública e os particulares, mas não como uma nova forma de atuação administrativa[1].


II. Conceito de ato administrativo

 

A definição atual de ato administrativo está prevista no artigo 148.º do CPA, que tem como título precisamente “Conceito de Ato Administrativo”. Neste seguimento, “consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”.

A verdade é que no seio doutrinal, encontramos diferentes posições quanto à definição de ato administrativo. Conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a persecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto[2]. Esta é a perspetiva adotada por MARCELLO CAETANO, noção essa de clara inspiração francesa, quer pela ideia de voluntariedade da conduta, quer pela amplitude do ato administrativo caracterizado pela simples produção de efeitos.[3] VASCO PEREIRA DA SILVA[4] vem evidenciar como o conceito e o próprio âmbito de aplicação do ato administrativo veio sofrer algumas alterações ao longo dos tempos. O autor aponta: “o Estado liberal […] trouxe consigo um modelo de acto administrativo desfavorável ou autoritário; tal como o Estado social, com o surgimento da Administração prestadora, implicou a criação da figura do acto administrativo favorável; e o Estado pós-social, com a aparição da Administração conformadora ou de infraestruturas, faz surgir o ato administrativo multilateral, ou de “eficácia em relação a terceiros”. 

 

II.I O ato administrativo automatizado e a sua vulnerabilidade jurídica

 

É importante, antes de mais, considerar que a automatização das decisões administrativas[5] tem, em regra, um alcance limitado. Torna-se imperativo salientar que o CPA se demonstra insuficiente no que toca a esta regulação. Contrariamente, o § 35 do CPA Alemão prevê uma possibilidade de um ato administrativo poder vir a ser praticado por mecanismos automáticos, desde que o ordenamento jurídico o admita, deixando explícito  a não admissibilidade de que subsistam margens de discricionariedade ou de qualquer livre decisão. Também esta decisão terá sido adotada em Espanha, onde o art.41.º da Ley 40/2015 de 1 de octubre, o definiu como “ato ou atuação realizada integralmente por meios eletrónicos, sem intervenção direta de funcionário da administração pública” (tradução livre)[6].

A solução apresentada pelo art.153.º n.º3 do CPA, no qual se estabelece a possibilidade de “[n]a resolução dos assuntos da mesma natureza” poder ser usado “qualquer meio mecânico que produza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva a diminuição das garantias dos interessados”, reside a única norma de relevo sobre a automatização de decisões administrativas. Era mais acertado, a este respeito, que o legislador  tivesse regulado explicitamente a matéria com vista a esclarecer as situações em que podem existir decisões administrativas automatizadas, caso contrário, subsistem dezenas de dúvidas jurídicas e conceptuais, assentando, desde já, na determinação da natureza jurídica da “decisão administrativa automatizada”. 

O conflito entre uma decisão automatizada e a conceção tradicional do ato administrativo, enquanto “conduta voluntária de um órgão da Administração”[7] afigura-se evidente. Sendo inteiramente gerado por um computador, o ato automatizado parece não envolver qualquer manifestação de vontade por parte de um ser humano. Por essa razão, seria expectável que ficasse excluído do âmbito dos atos administrativos. Em conformidade, à primeira vista, uma decisão informática não é mais do que o resultado de uma operação realizada por um computador[8]: a transformação de dados introduzidos num programa informático,  input, num resultado, output.

Contudo, a ideia de que a intervenção de um funcionário ou agente da Administração é um requisito indispensável para que determinada atuação seja qualificada como ato administrativo não tem sustentação. De facto, até há relativamente pouco tempo, a concretização da vontade da Administração estava sempre dependente da ação humana. Evidentemente, só o Homem possui vontade eficaz na Ordem Jurídica , já que esta constitui uma faculdade humana e só nos indivíduos se encontra[9], pelo que a prossecução do interesse público é mediatizada pela intervenção daquele. Não obstante, impera não ocultar que a circunstância de serem indivíduos a praticar os atos necessários à realização do interesse público não significa que a vontade subjacente aos mesmos seja individual. Pelo contrário, atuando o funcionário ou agente em nome da Administração, prosseguindo os interesses desta, a vontade expressa nos atos por si praticados é funcional, encontrando-se vinculada ao bloco de legalidade vigente. Assim, sendo os atos automatizados uma forma de expressão da vontade da Administração, ainda que através de meios tecnológicos, não se vislumbra qualquer impedimento à sua qualificação como atos administrativos. Com efeito, na expressão de VASCO PEREIRA DA SILVA, “o que está em causa não é a atuação do funcionário x ou y, mas uma decisão da Administração”[10]

Neste seguimento, e reconhecendo o carácter multinível do direito administrativo e o primado do Direito da União Europeia, cabe-nos convocar a aplicação do RGPD[11]. De acordo com o art.22.º do diploma referido, “[o] titular dos dados tem o direito de não ficar sujeito a nenhuma decisão tomada exclusivamente com base no tratamento automatizado, incluindo a definição de perfis, que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que o afete significativamente de forma similar”.  Tem se entendido, desde logo, que da previsão no art.22.º, n.º1 do RGPD se retira uma só regra geral de proibição das decisões administrativas totalmente automatizadas, excluindo da respetiva aplicação as situações em que existe uma automatização de decisões, mas que não ocorra integralmente por via automatizada[12]. Com efeito, a padronização da atividade administrativa através de decisões automatizadas tem como grande desvantagem poder vir a impedir a ponderação imposta por Lei. Tem sido igualmente realçado que a falta de capacidade de ponderação dos sistemas automatizados impede que se concretize as necessárias avaliações que decorrem da função administrativa, as quais só podem, sem colocar em causa a justiça do caso concreto, vir a ser operacionalizado pelo Homem.  Recentemente, a três de março do corrente ano, o Tribunal Administrativo Regional de Lazio deferiu um acórdão[13] referente a utilização de um modelo automatizado para efeitos de contratação pública. Na mesma jurisprudência, foi explicitado que o recurso a estes instrumentos deve ser feito com cautela, servindo somente para o apoio matemático-estatístico e de processamento de dados que se traduzam numa eficiência e qualidade do serviço. 

Torna-se, nesta linha, necessário analisar ainda os vícios referentes a esta tipologia de atos administrativos. Na verdade, como refere PEDRO GONÇALVES, a infalibilidade da máquina não passa de um mito[14]. Neste sentido, para além das conhecidas vicissitudes dos atos administrativos tradicionais (e.g. falta de fundamentação[15] ), o ato administrativo

automatizado acarreta vicissitudes específicas e próprias de um procedimento decisório

informatizado[16].

 

III. A responsabilidade extracontratual do Estado no Ordenamento jurídico Português

 

De acordo com MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS[17], entende-se por responsabilidade civil administrativa o conjunto de circunstâncias da qual emerge, para a Administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes, a obrigação de indemnização dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade administrativa.

A Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) consagra expressamente a responsabilidade do Estado nos seus artigos 22.º, 266.º e 271.º. Para esta discussão, chamo à colação o Acórdão n.º153/90 do Tribunal Constitucional[18], onde o coletivo de juízes determinou que, a partir da letra do preceito (que se refere à violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem) e dos trabalhos preparatórios, o art.22.º da CRP tem unicamente em vista a responsabilidade delitual, não se situando “no domínio da responsabilidade emergente do não cumprimento, cumprimento defeituoso ou retardamento no cumprimento dos contratos”[19]. A afirmação da responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas no art.22.º da CRP tem uma dimensão subjetiva, não se esgotando, portanto, numa mera garantia institucional[20]. A verdade é que este instituto apresenta uma real importância inserindo-se na primeira parte da Constituição, relativa aos direitos fundamentais, revelando que o legislador constitucional configura a resposta ao problema indemnizatório, não apenas enquanto princípio organizatório, mas também como um instrumento fundamental de proteção dos particulares. 

Trata-se, igualmente, de responsabilidade civil as matérias ressalvadas pelo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas[21] (doravante, RRCEE), encontrando-se excluídas as responsabilidades de índole diversa (política, contraordenacional, penal ou disciplinar). A finalidade do instituto de responsabilidade civil é colocar o lesado na posição em que estaria se não tivesse existido a lesão, isto é, o facto positivo ou negativo lesivo da sua esfera jurídico-patrimonial. Deste modo, o prejuízo sofrido terá de ser ressarcido, nos termos do art.3.º da RRCEE, sendo fixada  numa quantia pecuniária. O âmbito de aplicação da responsabilidade do Estado desdobra-se em três vertentes: a) função administrativa (art.7.º a 11.º da RRCEE), função jurisdicional (art.12.º a 14.º da RRCEE) e função legislativa (art.15.º da RRCEE). Focar-nos-emos na análise da responsabilidade por função administrativa. Tratando-se de uma responsabilidade por facto decorrente da função administrativa, circunscrita, por isso, às ações ou omissões no exercício de prerrogativas de direito público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. 

 

III.I Imputação da Responsabilidade nos atos administrativos automatizados



O artigo 7.º, n.º 1 do RRCEEP dá início ao regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual da Administração, estabelecendo os requisitos que devem ser cumpridos no âmbito da responsabilidade civil por facto ilícito. Nesta linha, e de forma a garantir que “o fluir da atividade administrativa não seja tolhido”[22] por força do receio de imputação individual, o preceito em apreço consagra a responsabilidade exclusiva da entidade pública pelos danos decorrentes de atos ou omissões ilícitas, praticados com mera culpa leve, por titulares de órgãos, funcionários ou agentes, no âmbito e por causa do exercício da função administrativa. Contudo, o artigo 8.º, n.º 1 do RRCEEP esclarece que, quando os titulares de órgãos, funcionários ou agentes atuem com dolo ou com um nível de diligência e zelo manifestamente inferior ao exigido pelas suas funções, estes podem ser responsabilizados diretamente e a título pessoal pelos danos causados. Esta responsabilidade direta não exclui a responsabilidade solidária do ente público, sempre que a ação ou omissão tenha ocorrido no exercício das funções e por causa desse exercício (artigo 8.º, n.º 2 RRCEEP). Neste seguimento, deverá ser sempre assegurado a existência de um funcionário ou agente da Administração responsável por acompanhar o desenvolvimento do sistema, neste caso, remetendo analogicamente para o responsável pela direção do procedimento (cfr. artigo 55.º do CPA)[23].

Quanto à ilicitude, esta consiste no juízo de desvalor formulado pela ordem jurídica sobre a atuação positiva ou negativa do funcionário ou agente ( art.9.º, n.º1 RRCEE), correspondendo à violação de regras jurídicas, princípios constitucionais, legais ou regulamentares, regras técnicas ou de um dever objetivo de cuidado.

A verdade é que nada, na RRCEE, nos remete para a ilicitude de atos praticados autonomamente. Contudo, de forma imediata é nos possível extrair mecanismos legais para garantir a fundamentação da ilicitude nos casos relacionados com atos administrativos automatizados. Quanto aos casos de deveres jurídicos, podemos estar perante um dever de supervisão do sistema que poderá consistir na efetivação de atualizações de software, por exemplo[24]

No entanto, tal revelaria uma dificuldade acrescida, especialmente quando a causa da desconformidade estivesse associada, por exemplo, a fenómenos climáticos, a uma sobrecarga elétrica ou a uma infiltração. Neste sentido, ainda que deva “ser exigido que os requisitos para a utilização e manutenção do sistema eletrónico sejam cuidadosamente observados, [...] não existe qualquer obrigação jurídica de “supervisão permanente””[25], pelo que, inevitavelmente, a Administração acabaria, em muitos casos, por se ver isenta de qualquer responsabilidade pelos prejuízos resultantes da utilização desses equipamentos. O regime da responsabilidade administrativa pelo funcionamento anormal do serviço visa a responsabilização da Administração enquanto tal, pela sua própria conduta lesiva, sem necessidade da demonstração de que um determinado agente atuou com culpa, mas apenas de que o serviço no seu conjunto funcionou de modo anormal, seja porque não funcionou em absoluto, seja porque funcionou tardiamente ou, em todo o caso, porque não observou os padrões mínimos de resultado que se lhe impunham.[26]

 

Existem várias situações em que a atribuição de culpa individual se torna inviável, devido à impossibilidade de associar os danos a uma conduta específica de alguém, seja por resultarem de uma falha coletiva, seja por não ser possível identificar o autor da ação ou omissão, o que se designa por falta anónima. 

Assim, o conceito de ilicitude é alargado, deixando de incidir sobre a ação em si para se centrar no resultado, ou seja, no dano injusto sofrido pelo particular lesado. Deste modo, conforme estabelece o artigo 9.º, n.º 2 do RRCEEP, considera-se haver ilicitude quando a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados decorre de um funcionamento anormal do serviço. No que toca à aferição da culpa, procede-se a um juízo de censura sobre o próprio serviço, por oposição ao concreto comportamento lesivo do agente administrativo[27]. O funcionamento anormal do serviço resulta, assim, da inexistência de “uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos” que, tendo em conta as circunstâncias e os padrões médios de resultado, não só era viável, como também se apresentava como exigível ao serviço em causa (artigo 7.º, n.º 4 do RRCEEP).

O regime relativo ao funcionamento anormal do serviço exige, igualmente, a verificação de uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos (artigo 7.º, n.º 4 do RRCEEP). Tal conclusão pode ser alcançada, desde logo, com base em disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares, em “regras de ordem técnica ou ainda em deveres objetivos de cuidado (artigo 9.º, n.º 1 e 2 do RRCEEP).
A título ilustrativo, se uma máquina for responsável pela atribuição de uma determinada prestação social e deixar de o fazer, apesar de o particular cumprir os requisitos exigidos para a sua concessão, torna-se evidente que o serviço não está a funcionar adequadamente. Esta falha viola não só as normas jurídicas aplicáveis, mas também os efeitos sociais e económicos que recaem sobre o administrado. É ainda essencial sublinhar que tal atuação, capaz de evitar os danos, deveria ser algo razoavelmente exigível ao serviço (artigo 7.º, n.º 4 do RRCEEP). Com efeito, ainda que possa ser exigível a manutenção e proteção dos equipamentos utilizados pela Administração no quadro da automatização, não será, em princípio, exigível, que os mesmos se encontrem preparados para resistir a fenómenos meteorológicos extremos[28], tais como terramotos, tsunamis, entre outros.

 

 

 

V. Análise Jurisprudencial 

 

A adequação da presente modalidade de responsabilidade civil extracontratual da Administração à atividade administrativa automatizada já foi reconhecida pela jurisprudência, tal como consta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte,

de 18 de dezembro de 2015, processo n.º 02209/08.0BEPRT[29]. No presente caso, o cidadão em causa foi detido por agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no Aeroporto de Lisboa, em cumprimento de dois mandados de detenção, que determinavam a sua condução a um estabelecimento prisional para cumprimento da respetiva pena de prisão. Contudo, foi-lhe dada a possibilidade de pagar as coimas a que havia sido condenado, opção que aceitou e concretizou.

Duas semanas mais tarde, ao preparar-se para embarcar num voo com destino a Genebra, no Aeroporto Francisco Sá Carneiro (Porto), foi novamente detido por um agente da autoridade responsável pelo controlo fronteiriço, por constar no sistema informático uma indicação relativa à aplicação de medidas cautelares. Importa referir que o sistema informático que permitiria verificar essa informação encontrava-se inoperacional, não refletindo o registo do pagamento das referidas coimas.

Como resultado, o cidadão foi retido durante aproximadamente duas horas, ficando impedido de embarcar no voo previsto. Importa ainda sublinhar que, neste caso, o erro não se deveu a uma atuação isolada de um funcionário em particular, mas sim a uma falha coletiva dos serviços envolvidos, sendo a responsabilidade atribuída à atuação global do SEF enquanto entidade. Não se coloca, por isso, em causa o comportamento dos agentes do SEF, que agiram de acordo com a informação fornecida pelo sistema informático, como seria de esperar. O que se põe em causa é, antes, o funcionamento desse mesmo sistema, que originou uma detenção ilegal e exigiu que fosse o próprio administrado a apresentar prova em contrário para ser libertado. 

"Na verdade, como veio a ser demonstrado pelo tribunal de recurso, a disfunção do serviço tornou-se evidente num momento anterior, aquando da falha do sistema informático em apresentar a informação relativa ao pagamento das coimas. Em conformidade, a anormalidade funcional do serviço deverá ser apurada por referência a padrões médios de resultado (artigo 7.º, n.º4 do RRCEEP), isto é, por comparação com os parâmetros de desempenho funcional da espécie do serviço em causa, segundo um desempenho que não tem de ser de excelência, mas de nível médio[30]. Assim, importa concluir que, da mesma forma que constava no sistema informático a existência dos mandados de detenção – aos quais os funcionários do SEF tiveram acesso – deveria igualmente constar a informação atualizada relativa ao pagamento das coimas, aplicadas em substituição das penas de prisão ao autor. Esta omissão evidenciou, pois, um funcionamento anómalo do serviço.

Com base neste entendimento, os juízes da Secção Administrativa condenaram o Estado Português ao pagamento de indemnização por danos patrimoniais – correspondentes ao prejuízo sofrido pelo autor com a perda do voo e a necessidade de adquirir um novo bilhete – e por danos não patrimoniais, relacionados com a privação da liberdade em espaço público, à vista de terceiros, circunstância que configurou uma situação de humilhação e afronta à sua integridade moral.

 

VI. Conclusões

 

A presente investigação procurou refletir, de forma crítica e aprofundada, sobre a crescente automatização das decisões administrativas e os desafios jurídicos que esta tendência impõe ao Direito Administrativo contemporâneo. Demonstrou-se que, não obstante a natureza tecnológica dos atos administrativos automatizados, estes não devem ser excluídos do conceito clássico de ato administrativo, desde que exteriorizem a vontade funcional da Administração. A análise sistemática do ordenamento jurídico português, (com especial enfoque no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e no artigo 22.º da CRP),  evidenciou que a matriz normativa vigente oferece já bases, ainda que pouco sólidas, para a imputação de responsabilidade por decisões tecnológicas lesivas, designadamente através do regime de responsabilidade civil do Estado por  funcionamento anormal do serviço. Conclui-se, assim, que o progresso tecnológico, embora irreversível, não pode prescindir de uma tutela jurídica efetiva dos direitos dos particulares, impondo-se ao legislador e ao poder jurisdicional um esforço constante de adaptação normativa e hermenêutica, de modo a garantir a harmonização entre inovação e segurança jurídica no seio da atividade administrativa.

 

Referências 

 

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RAQUEL CARVALHO, “Artigo 7.º: Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas coletivas de direito público – comentário ao n.º 1”, in Comentário ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas (coord. Rui Medeiros), Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013.

 

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VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do ato administrativo perdido, reimp. (1995), Coimbra, Almedina, 2016.

 

 



* Aluno do 2.ºano do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Endereço de Correio Eletrónico: martimdias@edu.ulisboa.pt

 

[1] MIGUEL PRATA ROQUE , “O procedimento eletrónico”, in Comentários ao Novo Procedimento Administrativo, Coord. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, vol. I, 5.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2020, p.603.

[2] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, 10.ª edição, Coimbra: Almedina, 1991, p. 440 e 441

[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, Almedina, 1995, p. 613.

[4] Idem, p. 445.

[5] Sobre o tema, ainda que sob a perspetiva do CPA de 1991, relativamente ao ato administrativo informatizado, v. PEDRO COSTA GONÇALVES, "O acto administrativo informático: (o direito administrativo português face à aplicação da informática na decisão administrativa)", in

Scientia Ivridica, n.º 265-267 (1997), pp. 47 e ss.

[6] BEATRIZ GARCIA, “A Responsabilidade Civil Extracontratual Pública e a Inteligência Artificial”, in Por Ocasião do I Curso de Pós-Graduação em Responsabilidade Civil da Administração Pública, coord. Carla Amado Gomes e Tiago Serrão, Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2025, p. 75.

[7] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, 10.ª edição, Coimbra: Almedina, 1991, p. 428; no mesmo sentido, também ROGÉRIO SOARES (Direito Administrativo, lições policopiadas, Coimbra, 1978, p. 76) classifica o ato administrativo como uma «estatuição autoritária, relativa a um caso individual, manifestada por um agente da Administração».

[8] Na expressão de KARL ZEIDLER (CATARINA SARMENTO E CASTRO, Administração Pública e novas tecnologias, p. 472) o ato praticado pelo computador não seria mais do que um «produto da máquina»

[9] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativoop. cit., p. 179

[10] VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do ato administrativo perdido, reimp. (1995), Coimbra, Almedina, 2016, p. 483.

[11] Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD), JO L 119, de 4/5/2016.

[12] ARTUR FLAMÍNO DA SILVA, “Inteligência artificial e Direito administrativo”, in Direito Administrativo e Tecnologia, coord. Artur Flamínio da Silva, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2023, p.27

[13] Tribunale Amministrativo Regionale per il Lazio. (2025). Sentenza n.º 4546/2025, 29 gennaio 2025 – Romeo Gestioni S.p.A. c. Consip S.p.A. e altri (N. 12564/2024). Roma: TAR Lazio, Sezione Seconda.

[14] PEDRO COSTA GONÇALVES, "O acto administrativo informático: (o direito administrativo português face à aplicação da informática na decisão administrativa)", in Scientia Ivridica, n.º 265-267 (1997), p. 89

[15] Cfr. art.151.º n.º1 al. d), 152.º,153.º  e 163.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, na redação atual. 

[16] CATARINA SARMENTO E CASTRO, Administração Pública e novas tecnologias: Implicações no procedimento e no ato administrativo, Dissertação de Doutoramento, Universidade de Coimbra, julho de 2017, p. 539.

[17] MARCELO REBELO DE SOUSA; ANDRÉ SALGADO DE MATOS,  Direito Administrativo Geral - Atividade Administrativa, Tomo III, 2.ª edição, D. Quixote, Lisboa, 2016, p.11

[18] Ac. do TC de 03/05/1990, proc.340/87

[19] JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, p. 342.

[20] JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, p. 342.

[21] Cfr. Lei n.º67/2007, de 31 de dezembro.

[22] RAQUEL CARVALHO, “Artigo 7.º: Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas coletivas de direito público – comentário ao n.º 1”, in Comentário ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas (coord. Rui Medeiros), Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, p. 167.

[23] BEATRIZ GARCIA, “A Responsabilidade Civil Extracontratual Pública e a Inteligência Artificial”, in Por Ocasião do I Curso de Pós-Graduação em Responsabilidade Civil da Administração Pública, coord. Carla Amado Gomes e Tiago Serrão, Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2025, p. 84.

[24] Idem, p.86

[25] PEDRO COSTA GONÇALVES, "O acto administrativo informático: (o direito administrativo português face à aplicação da informática na decisão administrativa)", in Scientia Ivridica, n.º 265-267 (1997), p.93.

[26] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Artigo 7.º, n.º 3 e 4: Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”, in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Universidade Católica Portuguesa, 2013, pp. 218-219.

[27] CARLA AMADO GOMES “Nota breve sobre a tendência de objetivação da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas no regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, 2013, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Lisboa, p. 89

[28] ANA FERNANDA NEVES, “Artigo 7.º: anotação aos n. os 3 e 4”, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentário à Luz da Jurisprudência, coord. Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, 3.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2022, p.590

[30] ANA FERNANDA NEVES, “Artigo 7.º: anotação aos n. os 3 e 4”, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentário à Luz da Jurisprudência, coord. Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, 3.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2022, p. 594.

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