O Princípio da Justiça: “órgão” funcional ou apêndice da Administração?
“Não passa miraculosamente a ser justa qualquer destas coisas logo que batizada com papel timbrado da República e a bênção da promulgação. Nos nossos dias o que é entendido como Direito não passa desse rito de juntar votos e carimbos à vontade de uns tantos.”
Professor Doutor Paulo Cunha, prefácio, in Obra Jurídica de Aristóteles.
ÍNDICE
1. Introdução
1.1. Apresentação do tema
1.2. Objetivo do trabalho
2. O Princípio da Justiça no Direito Administrativo
2.1. Enquadramento histórico e normativo do princípio da justiça
2.2. Análise contemporânea do princípio da justiça
3. A Justiça na Administração Pública
3.1. A consagração constitucional do princípio da justiça
3.2. O valor operativo do princípio
4. O Princípio da Justiça na Jurisprudência Portuguesa
4.1. Análise de decisões jurisprudenciais
5. Conclusão
- 1. Introdução
1.1. Apresentação do tema
O princípio da justiça é um dos pilares fundamentais do Direito Administrativo, a par da igualdade, proporcionalidade, imparcialidade e boa-fé[1]. Ora, ainda que imponente, e antigo, nem sempre se traduz numa aplicação concreta. O que me proponho neste pequeno ensaio escrito é explorar este lado eficaz e real, analisando por fim se estamos perante um princípio verdadeiramente funcional ou apenas um símbolo de legitimidade e continuidade histórica.
1.2. Objetivo do trabalho
O presente trabalho tem por objetivo analisar criticamente o papel do princípio da justiça na atuação da Administração Pública, questionando se este constitui um verdadeiro “órgão” funcional ou, pelo contrário, um mero apêndice mantido por tradição. Não se pretende, de modo algum, realizar um aprofundamento exaustivo da evolução histórica e filosófica do conceito, sob pena de invadir o domínio próprio da Filosofia do Direito. Contudo, importa reconhecer que “falar no princípio da justiça implica falar na ideia ou no ideal de Justiça, que é das noções mais difíceis de definir na área do Direito”[2]. Assim, tal como defende Diogo Freitas do Amaral[3], cabe ao administrativista estudar o princípio da justiça, sob pena de não o compreender e, consequentemente, de não o saber aplicar.
2. O Princípio da Justiça no Direito Administrativo
2.1. Enquadramento histórico e normativo do princípio da justiça
Nesta breve análise histórica, sigo de perto a exposição sistematizada do Professor Diogo Freitas do Amaral sobre a evolução da ideia de justiça, limitando-me a destacar os contributos mais relevantes para a formação do conceito jurídico-administrativo atual[4].
Desde os pré-socráticos, a justiça foi associada à igualdade e à proporcionalidade. Homero via a justiça como a repressão dos culpados, enquanto a escola pitagórica e Hesíodo a associavam ao equilíbrio nas relações humanas. Com Platão, a justiça é inicialmente definida como “dar a cada um o que lhe é devido”, evoluindo para uma visão de justiça como ordem social, impedindo a violência dos mais fortes sobre os mais fracos. A sua visão comunitarista, porém, não vingou nas sociedades ocidentais. Aristóteles, por sua vez, focou-se no “homem justo” e distinguiu entre justiça legal e justiça particular, subdividindo esta em justiça distributiva (proporcionalidade) e justiça corretiva (igualdade matemática). Introduziu também a noção de que a aplicação da justiça deve ser flexível para evitar injustiças formais; uma ideia que ainda hoje ecoa no artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa[5]. Entre os juristas romanos, Cícero e Ulpiano cimentaram as noções de justiça enquanto igualdade e atribuição a cada um do que lhe é devido segundo a sua dignidade — o que reforçou o caráter ético da justiça, para além do simples cumprimento da lei. Com a idade média, S. Tomás de Aquino acrescentou um elemento novo e decisivo: a justiça superior à própria lei. As leis humanas só seriam válidas enquanto conformes à justiça, o que lançaria as bases para o moderno conceito de Estado de Direito[6], isto é, o Estado não assenta numa vontade que se segue como padrão de Justiça, mas sim no Direito, que respeita a Justiça, independentemente da vontade. Durante a Revolução Francesa, pensadores como Hobbes e Rousseau focaram-se antes na autoridade da lei do que na da justiça. O princípio da legalidade passou a ser visto como suficiente para garantir justiça — crença que se revelou ingénua, como a história rapidamente demonstraria, já que as leis podem ser injustas, bem como as decisões e sentenças. Já no século XIX, pensadores como Proudhon e Marx denunciaram a profunda injustiça da sociedade capitalista. Marx, em particular, propôs a revolução como caminho para instaurar uma sociedade justa, baseada nas necessidades de cada um. Muitas democracias modernas refletem ainda hoje traços dessa ideia em políticas de redistribuição social. Perante os excessos ideológicos, o Papa Leão XIII procurou um caminho de equilíbrio e afirmou que era necessário resolver o problema social, e que é necessário aplicar o conceito de justiça à relação entre o trabalho e o capital. Surgiu assim o conceito de Justiça Social. Originalmente uma bandeira da Doutrina Social da Igreja, que se tornaria também de todos os movimentos políticos com "um mínimo de aspiração à construção de um mundo melhor”. O século XX foi marcado, inicialmente, pelo positivismo jurídico. No entanto, os julgamentos de Nuremberga demonstraram a falência da mera obediência legal, revalorizando a ideia de uma justiça acima da lei, isto porque seria injusto seguir a lei que era omissa aos casos julgados, ressurgindo assim a ideia de Justiça de São Tomás. Finalmente, no século XX e XXI, pensadores como Perelman, Tammelo, John Rawls, Nozick, Knapp e Castanheira Neves desenvolveram a ideia de que a justiça moderna deve equilibrar igualdade, proporcionalidade, razoabilidade, boa fé e dignidade da pessoa humana.
2.2. Análise contemporânea do Principio da Justiça
Segundo Castanheira Neves, a justiça moderna não pode ser reduzida à antiga fórmula "suum cuique tribuere" (dar a cada um o que é seu). A justiça, no contexto contemporâneo, exige uma avaliação crítica do que é "devido" a cada pessoa, não apenas com base na posse atual, mas segundo critérios de equidade e dignidade. Já para Diogo Freitas do Amaral, a justiça pode ser entendida como um "conjunto de valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido, em função da dignidade da pessoa humana"[7]. Esta visão coloca a dignidade humana como o critério fundamental da justiça, numa linha que retoma tanto a tradição estoica como o pensamento de São Tomás de Aquino. Paulo da Cunha adverte, contudo, que a justiça não deve ser confundida com sentimentos individuais, ideologias políticas ou moralismos religiosos. A justiça, enquanto categoria jurídica, exige objetividade e racionalidade, afastando-se de meros impulsos emocionais ou interesses contingentes[8]. José Pedro Machado diz que a Justiça é a conformidade com o Direito[9], já Menezes Cordeiro diz que a “justeza” da decisão depende da conformidade integral com o sistema jurídico que a propicia[10].
Ao percorrer os diversos contributos que, ao longo da história, moldaram a ideia de justiça, compreendemos que este princípio nunca teve um significado estático ou uniforme. A justiça evoluiu em função das necessidades sociais, políticas e filosóficas de cada época, ora como castigo, ora como igualdade, ora como limite moral da lei. Esta constante mutação demonstra que a justiça é, simultaneamente, um ideal e uma exigência concreta. No entanto, permanece o desafio essencial: definir, num determinado momento histórico, o que é justo e como operacionalizar essa exigência no seio das instituições jurídicas. É, pois, com este pano de fundo que se impõe analisar o acolhimento e a concretização do princípio da justiça na atividade administrativa contemporânea.
3. A Justiça na Administração Pública
3.1 A consagração constitucional do princípio da justiça
O artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa impõe à Administração Pública o respeito pelos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da proporcionalidade. Esta consagração constitucional, que retoma e reformula o conteúdo já previsto na versão originária de 1976 (então no artigo 267.º), elevou o princípio da justiça a um patamar normativo com pretensões estruturantes. Para o Professor Freitas do Amaral, não se trata apenas de uma exigência simbólica: “A referência autónoma ao princípio da justiça justifica-se na medida em que esta […] constitui o fundamento último da juridicidade da resposta dada pela ordem jurídica aos problemas que visa resolver”. “O princípio da justiça consagrado no 266º, nº2 da CRP representa, assim, a última ratio da subordinação da Administração ao direito”.[11] No entanto, a mesma doutrina reconhece que a justiça é uma noção complexa e escorregadia. Paulo da Cunha recorda que muitos a veem como um ideal, um sentimento ou uma utopia[12]. Quando esvaziada de densidade jurídica, torna-se vulnerável ao risco de ser invocada como “muleta de discurso”, mais próxima da retórica do que de uma matriz normativa aplicável[13].
3.2. O valor operativo do princípio
Apesar da sua consagração expressa, o princípio da justiça encontra-se frequentemente diluído entre outros princípios mais operacionais. Segundo Freitas do Amaral, a justiça integra em si os subprincípios da igualdade, da proporcionalidade e da boa-fé — valores que remontam a Aristóteles e permanecem relevantes na contemporaneidade. No entanto, se esses subprincípios são invocados e aplicados regularmente em sede administrativa e judicial, o mesmo não se pode dizer da justiça como conceito autónomo. De facto, poucos são os acórdãos que se apoiam diretamente no princípio da justiça para fundamentar uma decisão — como se a invocação do princípio fosse acessória, apenas admitida quando as outras categorias jurídicas falham ou se mostram insuficientes. Essa tendência leva-nos a questionar se a justiça opera verdadeiramente como um princípio funcional ou se se limita a desempenhar um papel decorativo, legitimando ex post a linguagem da Administração.
4. O Princípio da Justiça na Jurisprudência Portuguesa
4.1 Análise de decisões jurisprudenciais
Apesar da escassez de decisões que façam uso direto do princípio da justiça como critério determinante, existem alguns exemplos relevantes. Um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1994[14] é um desses raros casos em que a violação do princípio da justiça foi considerada fundamento direto de anulação de um ato administrativo. O tribunal reconheceu que, desde a Constituição de 1976, a justiça integra o núcleo dos princípios constitucionais da atividade administrativa. E concluiu: “a violação do princípio da justiça é fundamento da anulação contenciosa de um ato administrativo pelo vício de violação de lei”. Um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte[15] vai mais além ao reconhecer que a justiça pode, em casos excecionais, justificar a reabertura de processos e a prevalência da verdade material sobre o caso julgado. Esta decisão destaca a justiça como valor fundacional, mesmo quando em tensão com a segurança jurídica. Já um Acórdão do Tribunal Constitucional[16] mostra a justiça a operar como critério de validade constitucional, ligando-a à proporcionalidade e igualdade no âmbito das indemnizações por nacionalizações. Trata-se de uma aplicação conceptual relevante, embora sem grandes efeitos práticos isolados.
Um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul[17], por sua vez, demonstra como a justiça é frequentemente invocada pelos particulares, mas desconsiderada pelos tribunais por alegada falta de prova ou relevância jurídica. Neste caso, as alegações de violação da justiça, imparcialidade e igualdade foram rejeitadas sem que o princípio tivesse qualquer impacto decisivo no desfecho. Dois Acórdãos do Tribunal Constitucional[18], muito relevantes na matéria, reiteram a tendência jurisprudencial de mencionar a justiça como um ideal, associando-a à imparcialidade ou proporcionalidade, mas sem lhe atribuir eficácia direta como critério normativo de validade dos atos. Por fim, um Acórdão do STA de 1997[19] introduz uma leitura particularmente elucidativa ao considerar a proporcionalidade um verdadeiro corolário do princípio da justiça. A decisão reconhece que a justiça se traduz, no plano prático, na harmonização entre o interesse público e os direitos dos particulares, e que princípios como a proporcionalidade, a adequação e a proibição do excesso são fragmentos operativos do conceito mais amplo de justiça. Constata-se que, ainda que raramente aplicada de forma autónoma, a justiça persiste como o valor fundacional da atuação administrativa. Através da análise dos acórdãos mencionados, percebe-se que a justiça opera como origem dos princípios concretos que, esses sim, têm aplicação prática: a igualdade, a proporcionalidade e a boa-fé. É, portanto, na sua fragmentação em subprincípios que a justiça ganha eficácia e se torna relevante no quotidiano da Administração, reafirmando que, se a justiça é um símbolo, é também fonte de princípios operativos.
5. Conclusão
A análise desenvolvida ao longo deste trabalho permitiu verificar que o princípio da justiça, embora solenemente consagrado no artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa, se revela ambíguo na sua aplicação concreta pela Administração Pública e pelos tribunais. Através do percurso histórico, percebeu-se que a justiça é uma construção filosófica e jurídica que foi assumindo formas diversas: como castigo, igualdade, dignidade, ou proporcionalidade. Já no plano normativo-administrativo, identificou-se que os princípios tradicionalmente tidos como autónomos — igualdade, proporcionalidade, boa-fé — são, na verdade, fragmentações operativas da ideia mais ampla e abstrata de justiça.
A jurisprudência analisada confirma essa conclusão: o princípio da justiça raramente é aplicado como critério decisivo, sendo substituído ou traduzido em outros princípios mais concretos. No caso particular do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1997[20], é afirmado que o princípio da proporcionalidade é um verdadeiro corolário da justiça. Tal como se retira da doutrina de Freitas do Amaral, estes princípios não são independentes da justiça, mas sim as suas manifestações práticas, recortadas em blocos para serem utilizados no quotidiano jurídico. Assim, a justiça permanece como o "bolo" do qual se retiram as "fatias" comestíveis pela Administração: igualdade, proporcionalidade, boa-fé. Não sendo ignorada, a justiça é raramente consumida na sua totalidade. É usada com reverência, mas raramente aplicada como totalidade normativa. Por isso, conclui-se que o princípio da justiça se apresenta mais como um símbolo de legitimidade do que como um verdadeiro “órgão” funcional da atuação administrativa. No entanto seria desonesto da minha parte, dado tudo aquilo que analisei, considerá-lo um apêndice. A sua força reside, paradoxalmente, naquilo que dele se retira.
Referências
- AMARAL, DIOGO FREITAS DO - Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. Almedina, vol.II, 2018.
- AMARAL, DIOGO FREITAS DO - O Princípio da Justiça no Art.266º da Constituição, in Estudos em Homenagem ao Prof, Doutor Rogério Soares. Coimbra Editora, 2001.
- AQUINO, TOMÁS DE - Suma Teológica - Vol. VI: II Parte - Questões 57 - 122.
- CUNHA, PAULO DA - prefácio in Obra Jurídica, Aristóteles, Res-Editora.
- MENDES, JOÃO FREITAS - O Princípio da Injustiça - Administração, Política e Poética. Almedina, 2021.
- MACHADO, JOSÉ PEDRO - Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 3ª ed. Livros Horizonte, vol.III, 1997.
- CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES - Estudos de Direito Civil. Almedina, vol.I, 1994.
JURISPRUDÊNCIA:
- Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo - processo 032909 de 06/23/1994.
- Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo - Processo 041177 de 07/01/1997.
- Acórdão Tribunal Central Administrativo Norte - Processo 00005/04.0BEPRT-A de 07/08/2011.
- Acórdão Tribunal Central Administrativo Sul - Processo 01393/98 de 12/09/2004.
- Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 39/1988.
- Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 497/1997.
- Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 526/1999.
[1] Cf. Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), artigo 266º, nº2.
[2] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo II, pp.102 e seguintes.
[3] Idem.
[4] FREITAS DO AMARAL, O Princípio da Justiça no Art.266º da Constituição, in Estudos em Homenagem ao Prof, Doutor Rogério Soares, pp.686 e seguintes.
[5] CF. artigo 266º, nº2 da CRP: Ao referir-se ao cumprimento da Lei e posteriormente ao respeito da Justiça, é feita uma separação, positivada, de Lei e Justiça. Assume-se que nem sempre uma Lei seja justa, ou que até sendo, tenha efeitos injustos à luz do caso concreto.
[6] Cf. S.TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, questão 57.
[7] FREITAS DO AMARAL, O Princípio da Justiça no Art.266º da Constituição, in Estudos em Homenagem ao Prof, Doutor Rogério Soares, pp.686 e seguintes.
[8] Cf. PAULO CUNHA, prefácio in A obra jurídica de Aristóteles.
[9] Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p.360.
[10] Estudos de Direito Civil, vol.I, p.236.
[11] FREITAS DO AMARAL, O Princípio da Justiça no Art.266º da Constituição, in Estudos em Homenagem ao Prof, Doutor Rogério Soares, pp.686 e seguintes.
[12] PAULO CUNHA, prefácio in A obra jurídica de Aristóteles.
[13] JOÃO FREITAS MENDES, O Princípio da Injustiça - Administração, Política e Poética.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, doravante STA, processo 032909 de 06/23/1994.
[15] Processo 00005/04.0BEPRT-A de 07/08/2011.
[16] Acórdão n.º 39/1988 do Tribunal Constitucional, doravante TC, processo 136/85.
[17] Processo 01393/98 de 12/09/2004.
[18] Acordãos nº 497/1997 e 526/1999.
[19] Processo 041177 de 07/01/1997.
[20] Processo 041177 de 07/01/1997.
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