Trabalho de Blog - António Soares
Conflitos de Interesses na contratação administrativa: Interesses públicos vs. Interesses privados
Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva
Drª Beatriz Garcia
António Soares - Aluno do 2º ano do curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nº 69872, Turma B, Subturma 10, Trabalho realizado em abril de 2025
Índice
2. Conceito e regime dos contratos administrativos
3.1. Conflitos de interesses na contratação pública
3.2. Conflitos de interesses e o princípio da imparcialidade
3.3. Casos concretos de conflitos de interesses
5. Prevenção de conflitos de interesses
1. Introdução
No âmbito do Direito Administrativo, os contratos administrativos são um instrumento da administração pública que assumem uma grande relevância na prossecução do interesse público em conjunto com entidades privadas. Nos contratos administrativos, a Administração Pública não está em pé de igualdade com o particular, havendo uma prerrogativa de autoridade por parte da administração, visto que a administração pública age enquanto autoridade pública, com a missão de prosseguir o interesse público.
No entanto, esta autoridade atribuída à administração pública não pode ser exercida de forma arbitrária ou desequilibrada. Um dos principiais desafios da contratação administrativa reside no equilíbrio entre a prossecução do interesse público e a proteção dos direitos e legítimas expetativas dos particulares. Este equilíbrio e harmonização dos interesses dos particulares mostra-se relevante não só para assegurar a justiça contratual como também para garantir a confiança dos particulares na contratação pública.
Ao longo deste trabalho pretendo abordar o problema do equilíbrio entre o interesse público e interesse privado nos contratos administrativos. Para tal, será explorado o conceito e regime dos contratos administrativos, os principais princípios inerentes à contratação administrativa e os respetivos poderes da administração pública, bem como os mecanismos jurídicos destinados a restabelecer o equilíbrio contratual. Considerarei também alguns exemplos práticos e jurisprudência relevante, para um melhor estudo, pesquisa e compreensão desta problemática da administração pública.
O Direito dos contratos públicos desdobra-se em duas dimensões: o Direito da Contratação Pública, que regula os procedimentos de formação dos contratos públicos, e os regimes aplicáveis às relações emergentes dos contratos, onde se inserem as relações emergentes dos contratos administrativos.
A Parte III do Código dos Contratos Públicos estabelece o regime normativo aplicável aos contratos administrativos. Esta Parte III do Código dos Contratos Públicos divide-se em dois títulos. O Título I estabelece um regime que se aplica aos contratos administrativos em geral e o Título II estabelece o regime aplicável a um conjunto específico de contratos administrativos, que correspondem aos contratos administrativos típicos mais importantes. O artigo 278º do CCP e o artigo 200º/3 do CPA capacita e dá liberdade às partes para celebrar um contrato administrativo, desde que não resulte outra coisa da lei ou da natureza da relação a estabelecer. Estas normas dão liberdade à administração para o recurso ao contrato administrativo e, ao mesmo tempo, para optar entre o regulamento, o ato administrativo e o contrato administrativo, nos limites da lei e daquela natureza.
O artigo 280º do CCP apresenta os critérios materiais e formais do contrato administrativo, sem prejuízo de por vezes ser a própria lei a exigir a forma contratual. São estes critérios materiais que definem o que é e até onde vai a natureza da relação jurídica administrativa contratual. A administração é livre de usar o contrato administrativo quer como meio normal do exercício da sua atividade, quer para obter bens e serviços no mercado de trabalho ou até mesmo para instrumento de conformação de atos de autoridade. O conceito de contrato administrativo é um “conceito operativo”, relativamente ao qual o ordenamento jurídico faz corresponder a aplicação do regime do Título I da Parte III do CCP. [1]
O contrato administrativo está sujeito às regras de direito comunitário, mais concretamente às Diretivas de 2014, que vieram regular aspetos referentes ao regime de execução dos contratos públicos e impor certos limites às modificações dos contratos públicos.
2.1. Princípios
No Código dos Contratos Públicos estão elencados um conjunto de princípios gerais relativos à atuação administrativa que, juntamente com os princípios da doutrina, são essenciais no desempenho das funções por parte da administração, conforme as atribuições legalmente definidas.
Nos artigos 278º, 279º e 286º do CCP e 200º/3 do CPA, estão presentes os princípios da autonomia pública e da legalidade, que dão origem a uma possibilidade ampla, e não sujeita a qualquer tipificação, de regulação contratual das relações jurídicas administrativas.
O princípio da proporcionalidade, no artigo 281º do CCP, permite regular o equilíbrio das prestações e exigência de conexão material direta entre todos os direitos e deveres contratuais e o fim do contrato.
O Princípio da boa-fé e o princípio da prossecução do interesse público no cumprimento dos contratos estão previstos no artigo 286º do CCP.
Nos artigos 289º e 290º/1 do CCP identificamos o princípio da colaboração recíproca entre as partes, que se encontra também relacionado com o princípio da boa-fé, e está associado, por exemplo, a casos de prestação recíproca de informações necessárias à boa execução do contrato.[2]
A lei identifica um dever de proteção do co-contratante no artigo 291º do CCP, colocando ao contraente público o dever específico de mobilizar, de forma adequada e suficiente, os poderes de autoridade de que disponha (por exemplo, poderes de polícia ou de defesa do domínio público), em benefício da garantia das condições de adequada execução dos contratos administrativos.
O Princípio de execução pessoal (por parte do co-contratante) dos contratos administrativos encontra-se no artigo 288º do CCP e estabelece que o co-contratante deve cumprir pontualmente o convencionado, não podendo transmitir a terceiros as responsabilidades assumidas perante o contraente público.
2.2. Poderes
A administração contraente dispõe de um conjunto de poderes, ditos de conformação com a relação jurídica contratual, através dos quais adequa a execução do contrato às necessidades públicas em constante e rápida evolução produzindo direito no caso concreto. A prossecução do interesse público inferido a partir da lei também exige a presença do ato administrativo praticado ao abrigo daqueles poderes de conformação.
O Poder de direção do modo de execução consiste na possibilidade de emissão de diretivas, ordens, instruções ou outros atos previstos no contrato, que vinculam o co-contratante, sobre o modo de execução técnica, financeira ou jurídica das prestações contratuais, nos termos do artigo 302º, alínea a) e 304º/2 do CCP. Este poder, de acordo com os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, “abrange apenas a possibilidade de concretização do modus faciendi do co-contratante na execução das prestações decorrentes do contrato.”[3]
O Poder de fiscalização do modo de execução do contrato consiste no acompanhamento permanente das atividades do co-contratante no âmbito da execução do contrato, com vista a assegurar a prossecução do interesse público visado, estando previsto nos termos dos artigos 302º, alínea b) e 305º do CCP [4]
O poder de modificação unilateral do contrato consiste numa modificação sobre o próprio texto do contrato, ou seja, sobre as cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato celebrado, sem necessidade de acordo com o co-contratante ou de intervenção judicial, quando o interesse público o reclama. [5]
O poder contratual sancionatório está previsto no artigo 302º, alínea d) do CCP. Este poder consiste em decisões unilaterais tomadas com base no incumprimento total ou parcial, atraso no cumprimento, cumprimento defeituoso ou não execução pessoal do contrato pelo contratante.[6]
O Poder de Resolução Unilateral, previsto no artigo 302º, alínea e) do CCP consiste na faculdade atribuída à Administração para resolver um contrato administrativo sem a necessidade de consentimento do seu contratante ou de intervenção judicial.
3. Interesse Público
Nos contratos administrativos, um dos principais fundamentos e características passam pela prossecução do interesse público. É em razão dele que o contrato é realizado, que os contratantes executam as suas obrigações ou que o utente recebe o respetivo serviço. O Princípio do interesse público na administração pública está consagrado na Constituição da República Portuguesa no seu artigo 266º/1.
Para o Professor Sérvulo Correia, o conceito mais substancioso é o de Rivero, quando escreve que o interesse público representa a esfera das necessidades a que a iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade na sua totalidade e para cada um dos seus membros.[7]
O interesse público é o “norte da Administração pública” tal como definido pela Constituição da República nos artigos 20º e 266º e no artigo 4º do CPA, e constitui um dos mais importantes limites da margem da livre decisão administrativa. [8]
3.1. Conflitos de interesses na contratação pública
Para melhor análise, estudo e compreensão deste tema, será necessário compreender o termo “interesse” e o termo “conflito”, conceitos que se encontram interrelacionados.
Um conflito de interesses prossupõe, no mínimo, dois interesses e verifica-se quando “a suscetibilidade de satisfação de um apenas se verifique à custa do sacrifício ou em prejuízo, em maior ou menor medida, da suscetibilidade de satisfação por outro. estando o conflito de interesses polarizado subjetivamente num individuo.”[9]
O conceito de “interesse” corresponde a um conjunto de formulações, nomeadamente, o titular ter uma necessidade cuja verificação de um evento a satisfaz, o titular considerar a verificação desse evento como proveitoso para si próprio e o titular ter razões para querer a verificação desse evento.
Um conflito de interesses corresponde a uma “qualquer situação em que um dirigente ou o trabalhador de uma entidade adjudicante ou de um prestador de serviços que age em nome da entidade adjudicante, que participe na preparação e condução do procedimento de formação de contrato público ou que possa influenciar os resultados do mesmo, tem direta ou indiretamente um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal e esse interesse seja suscetível de comprometer a sua imparcialidade e independência no contexto referido no procedimento.”[10]
Na contratação pública, os conflitos de interesses assumem particular relevância porque colocam em causa a imparcialidade e a legitimidade das decisões administrativas. Estes conflitos não exigem que haja um favorecimento efetivo, bastando a existência de um interesse pessoal que possa influenciar ou aparentar influenciar o processo. São especialmente críticos quando ocorrem em fases sensíveis, como a definição dos critérios de adjudicação ou a escolha do co-contratante.
Na prática, podem decorrer de relações familiares, profissionais ou económicas entre decisores públicos e operadores privados, muitas vezes difíceis de detetar formalmente. Por isso, a sua prevenção exige não só a aplicação de normas jurídicas claras, como também mecanismos internos eficazes de controlo e uma cultura institucional orientada para a integridade. A simples perceção de que a decisão foi afetada por um interesse alheio ao interesse público é, por si só, suficiente para comprometer a confiança no procedimento e gerar responsabilidade jurídica.
3.2. Conflitos de interesses e o princípio da imparcialidade
O princípio da imparcialidade visa proteger a isenção administrativa no tratamento dos particulares. Encontra-se consagrado no artigo 266º/2 da CRP e no artigo 9º do CPA e, por remissão, no artigo 1º-A/3 do CCP. “A função administrativa caracteriza-se pela sua parcialidade ou vinculação ao princípio da prossecução do interesse público, e, ao mesmo tempo, pela sua imparcialidade ou dever de isenção dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes”.[11]
Este princípio constitui uma vertente negativa que se exprime no impedimento absoluto ou relativo da intervenção de titulares de órgãos ou de agentes administrativos em procedimento administrativo ou em ato de gestão pública ou privada nos quais tenham interesse seu ou próximo, que afete a sua isenção. Por outro lado, este também é constituído por uma vertente positiva que obriga a administração pública a ponderar exaustivamente todas as posições ou propostas de particulares em procedimento administrativo ou para o efeito da prática de ato de gestão pública ou privada. [12]
A concretização do princípio da imparcialidade no domínio da contratação pública revela-se particularmente exigente, uma vez que está em causa a tomada de decisões com impacto económico significativo, frequentemente sujeitas a pressões externas, interesses instalados ou relações pessoais e institucionais pré-existentes. A imparcialidade deve, por isso, ser entendida não apenas como um dever formal, mas como um garante da legitimidade da decisão administrativa, que só se sustenta quando os intervenientes se encontram afastados de qualquer interesse pessoal ou influência indevida.
Num contexto em que a Administração Pública recorre a contratos com entidades privadas para realizar funções públicas ou adquirir bens e serviços, a imparcialidade é testada em cada etapa do procedimento. A mínima perceção de favorecimento ou de benefício dirigido pode colocar em causa a credibilidade de todo o procedimento, mesmo que não exista prova de corrupção ou dolo. Assim, a aparência de imparcialidade é tão relevante quanto a imparcialidade efetiva, pois é ela que sustenta a confiança dos particulares na justiça do processo.
Na prática, a imparcialidade implica uma postura ativa da Administração na prevenção de situações de influência indevida, nomeadamente através da rotatividade de decisores, da publicitação transparente dos vínculos profissionais e patrimoniais dos intervenientes, e da instituição de mecanismos de rastreabilidade das decisões. A par disso, exige também uma cultura organizacional que valorize a integridade e a neutralidade, promovendo a denúncia interna de irregularidades e adotando códigos de conduta claros e exigentes.
A quebra da imparcialidade, pode resultar na anulação do contrato ou na responsabilização dos intervenientes, com impactos não apenas jurídicos, mas também reputacionais para a entidade pública. Por isso, o princípio da imparcialidade constitui um instrumento essencial de governação administrativa justa, ética e eficaz, cuja observância rigorosa é indispensável à prossecução do interesse público com transparência e equidade.
3.3. Casos concretos de conflitos de interesses
Em Portugal, são recorrentes os casos onde surgem conflitos de interesses que colocam em causa a integridade dos princípios. Tais princípios podem ocorrer quando os responsáveis pela tomada de decisões na administração pública têm interesses pessoais ou familiares em empresas ou entidades com as quais a administração contrata, criando o risco de favorecimento, parcialidade ou desvio do interesse público.
No acórdão n.º 2/2020 do Supremo Tribunal Administrativo, um presidente da junta de freguesia celebrou um contrato de empreitada com uma empresa do qual era sócio-gerente. Esta adjudicação foi feita por ajuste direto, o que significa que não houve concurso público.
Deste modo, o Tribunal teve de decidir se o contrato era válido, tendo em conta que o autarca tinha interesses pessoais na empresa contratada.
O Supremo Tribunal Administrativo considerou que, mesmo sem provas concretas de que o autarca tenha favorecido a empresa, o simples risco de favorecimento comprometia a imparcialidade e a transparência da contratação. A possibilidade de haver interferência nos interesses públicos foi suficiente para invalidar o contrato, em virtude de violações dos princípios de imparcialidade, transparência e do interesse público.
A nulidade do contrato foi declarada nos termos do artigo 284º do CCP e também se fundamentou no artigo 266º da CRP, que consagra o princípio da imparcialidade.
Um grande exemplo em Portugal é a Operação Influencer, uma investigação conduzida pelo Ministério Público português sobre suspeitas de corrupção, tráfico de influências e prevaricação no âmbito de negócios e contratos públicos envolvendo o Estado, privados e empresas ligadas à habitação, energias e investimentos internacionais.
O caso envolve alegações de que responsáveis públicos terão favorecido interesses privados em processos de contratação administrativa e decisões governamentais, em troca de benefícios ou influências políticas. Entre os visados estão membros do Governo, incluindo o ex-primeiro-ministro António Costa, assessores e empresários. A operação levou a buscas em vários ministérios e à queda do Governo em 2023.
Neste caso, verificamos mais uma vez a violação de princípios, como os da imparcialidade e do interesse público e verifica-se uma grande falta de transparência e separação entre funções públicas e interesses privados
4. Sanções
A violação das normas que regulam os conflitos de interesses nos contratos administrativos pode dar lugar à aplicação de diferentes sanções, consoante a gravidade da infração, os sujeitos envolvidos e os princípios violados. Estas sanções assumem natureza administrativa, civil, disciplinar ou penal, visando preservar a legalidade, a imparcialidade e a transparência na contratação pública, bem como assegurar a confiança dos cidadãos na atuação da Administração.
Em primeiro lugar, as sanções administrativas resultam diretamente da aplicação do Código dos Contratos Públicos (CCP). Nestes casos, os efeitos jurídicos podem traduzir-se na exclusão de concorrentes envolvidos em situações de conflito de interesses, nos termos do artigo 55.º do CCP, ou na anulação do contrato celebrado, nos termos do artigo 284.º, sempre que se verifique a violação de princípios fundamentais da contratação pública, como a imparcialidade, a igualdade e a concorrência. Em situações mais graves, poderá também verificar-se a inibição do exercício de funções em procedimentos contratuais futuros, nomeadamente para titulares de cargos públicos ou funcionários envolvidos (Artigo 55º/1, alínea k) e 55º/2 do CCP).
A nível civil, os conflitos de interesses podem gerar responsabilidade por danos causados à Administração Pública ou a terceiros. Por exemplo, poderá ser exigido o pagamento de indemnizações por prejuízos resultantes da celebração ou execução de contratos viciados, bem como a restituição de eventuais vantagens indevidamente obtidas. Esta responsabilidade decorre das regras gerais da responsabilidade civil previstas no Código Civil e pode ser invocada paralelamente às demais consequências sancionatórias.
Por sua vez, no plano disciplinar, os funcionários públicos e demais agentes administrativos que atuem em violação dos seus deveres funcionais, como os deveres de imparcialidade, isenção e lealdade institucional, podem ser alvo de procedimento disciplinar nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. As sanções aplicáveis incluem a advertência, a suspensão e, nos casos mais graves, a demissão do serviço, especialmente quando a conduta do agente comprometa de forma grave o interesse público ou revele favorecimento indevido.[13]
Finalmente, algumas situações de conflito de interesses podem configurar ilícitos criminais, sempre que estejam associadas a condutas dolosas e atentatórias da probidade administrativa. Entre os crimes previstos no Código Penal português, destacam-se a corrupção ativa e passiva (artigos 372.º a 374.º-A CP), a prevaricação (artigo 11.º da Lei da Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos) e a participação económica em negócio (artigo 377.º CP). Estes crimes são puníveis com penas de prisão e, em muitos casos, com a perda do cargo ou da função pública, sendo aplicáveis não apenas a decisores políticos, mas também a técnicos e funcionários com responsabilidade nos procedimentos contratuais.
A pluralidade e gravidade das sanções possíveis refletem a centralidade do princípio da imparcialidade no direito administrativo (artigos 266.º da Constituição e 9.º do CPA) e a importância de prevenir qualquer forma de desvio do interesse público no âmbito da contratação. A responsabilização efetiva de quem incorre em conflitos de interesses constitui, assim, um elemento essencial para a defesa do Estado de direito, da boa administração e da igualdade de oportunidades entre os operadores económicos.
5. Prevenção de conflitos de interesses
A prevenção dos conflitos de interesses na contratação pública é um dos pilares fundamentais para assegurar a integridade, a justiça e a eficiência do setor público. Quando o interesse privado interfere no processo de contratação, não está apenas em causa a legalidade do procedimento, mas também a confiança dos cidadãos na administração pública, o bom uso dos dinheiros públicos e a igualdade de oportunidades entre os operadores económicos. Trata-se, pois, de um problema que afeta diretamente a legitimidade do Estado e a eficácia da sua ação. A contratação pública representa uma parcela significativa do investimento público e constitui um instrumento crucial de execução de políticas públicas. Por isso, os riscos de captura, influência indevida e favorecimento devem ser enfrentados com seriedade e através de um conjunto coerente de medidas jurídicas, institucionais e éticas.[14]
Em Portugal, o quadro normativo tem evoluído no sentido de reforçar os mecanismos de prevenção e deteção precoce de situações de conflito de interesses. O Código dos Contratos Públicos impõe um conjunto de obrigações procedimentais que visam garantir a transparência e a imparcialidade dos agentes envolvidos no processo contratual. Entre essas obrigações, destacam-se as declarações de inexistência de conflitos de interesses que devem ser prestadas por todos os intervenientes com responsabilidade decisória. Estas declarações não são meros formalismos, mas instrumentos essenciais de responsabilização individual e de rastreabilidade da atuação administrativa.
Contudo, a legislação, por si só, não é suficiente. A realidade demonstra que muitos conflitos de interesses passam despercebidos ou são camuflados através de redes informais de influência e de relações opacas entre o setor público e o privado. Neste sentido, a atuação das entidades de controlo assume um papel indispensável. O Tribunal de Contas, através das suas auditorias e ações de fiscalização prévia e sucessiva, tem vindo a identificar casos relevantes de contratação pública. Também a Inspeção-Geral de Finanças e a Autoridade da Concorrência desempenham funções cruciais na deteção de práticas lesivas da concorrência ou contrárias à boa gestão pública.
Não obstante, é ao nível institucional e cultural que a prevenção deve ser mais profundamente enraizada. A criação de códigos de ética e conduta dentro das entidades adjudicantes permite estabelecer padrões de comportamento claros e expectativas normativas quanto à atuação dos seus funcionários. Estes códigos devem abranger não só os princípios de imparcialidade e lealdade institucional, mas também diretrizes concretas sobre como identificar, comunicar e resolver potenciais situações de conflito. A implementação de unidades de integridade ou departamentos de compliance, ainda que pouco comum na administração portuguesa, começa a ganhar terreno como medida eficaz de apoio e supervisão interna, com capacidade para oferecer pareceres especializados, promover formação e garantir o cumprimento das normas de integridade pública.
A formação dos agentes públicos é, igualmente, um elemento-chave para a prevenção. Muitos conflitos de interesses resultam mais de desconhecimento e desvalorização do problema do que de má-fé deliberada. Assim, uma política pública de formação contínua e obrigatória para todos os que participam em procedimentos de contratação, incluindo dirigentes, juristas e técnicos seria uma medida estruturante e duradoura. Esta formação deve ir além da dimensão legal, abordando questões éticas, dilemas reais e boas práticas de governação pública.
A transparência desempenha também um papel inegável na prevenção. A publicitação das decisões e contratos no Portal BASE e noutros meios permite que qualquer cidadão, jornalista, concorrente ou entidade de controlo possa exercer uma vigilância democrática sobre a atividade administrativa. O conhecimento público da informação é, por si só, um forte fator de dissuasão de práticas indevidas. No entanto, para que a transparência seja eficaz, não basta disponibilizar dados — é necessário que esses dados sejam acessíveis, compreensíveis e auditáveis.
Em suma, os conflitos de interesses na contratação administrativa constituem uma das ameaças mais relevantes à integridade da atuação do Estado e ao cumprimento dos princípios fundamentais que regem a administração pública. A sobreposição entre interesses privados e o exercício de funções públicas, quando não controlada, coloca em risco o dever de imparcialidade, compromete a prossecução do interesse público e fragiliza os pilares do Estado de Direito. Ao longo deste trabalho, foram analisados casos concretos retirados da jurisprudência e da realidade política nacional recente, como a Operação Influencer, que revelam com clareza os perigos associados à instrumentalização do poder público para benefício de interesses particulares. Estes exemplos demonstram que os conflitos de interesses não são meramente hipotéticos ou formais, mas sim situações com consequências jurídicas, institucionais e sociais profundas, capazes de corroer a confiança da população nas instituições democráticas e de afetar a boa gestão dos recursos públicos.
Apesar de a legislação portuguesa prever um conjunto de normas destinadas a prevenir estas situações, como o Código dos Contratos Públicos, o Código de Procedimento Administrativo e o regime jurídico do exercício de funções públicas, a eficácia dessas normas depende não só da sua aplicação rigorosa, mas também da promoção de uma cultura administrativa pautada pela ética, responsabilidade e transparência. Assim, é fundamental reforçar os mecanismos de controlo, garantir a responsabilização efetiva dos titulares de cargos públicos e consolidar um compromisso coletivo com a integridade. A prevenção dos conflitos de interesses não é apenas uma exigência legal, mas uma condição essencial para a legitimidade da contratação pública e para a construção de uma administração verdadeiramente ao serviço do bem comum.
o Luiz S. Cabral de Moncada, O Contrato Administrativo e a Autoridade da Administração, Quid Juris, 1ª Edição, 2021
o Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, Almedina, 3ª Edição, 2016
o Miguel Assis Raimundo, Direito dos Contratos Públicos – Volume 2, AAFDL Editora, 1ª Edição, 2022
o Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Contratos Públicos, Dom Quixote, 2ª Edição, 2009
o Jorge Andrade d Silva, Código dos Contratos Públicos Anotado e Comentado, Almedina, 6ª Edição, 2017
o Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, 1987
o A prossecução do Interesse Público como princípio orientador no contrato administrativo de concessão, Juliana Castilho Bittencourt, Dissertação de mestrado, 2006
o Pedro Moniz Lopes e Maria Teresa Capela, Comentários ao Código dos Contratos Públicos Volume II, AAFDL Editora, 5ª Edição, 2024
o Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo Volume I, Lex, 1999
[1] Luiz S. Cabral de Moncada, O Contrato Administrativo e a Autoridade da Administração, Quid Juris, 1ª Edição, 2021, p. 29-36
[2] Miguel Assis Raimundo, Direito dos Contratos Públicos – Volume 2, AAFDL Editora, 1ª Edição, 2022 p. 46 - 47
[3] Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Contratos Públicos, Dom Quixote, 2ª Edição, 2009, p. 153
[4] Miguel Assis Raimundo, Direito dos Contratos Públicos – Volume 2, AAFDL Editora, 1ª Edição, 2022 p. 433-434
[5] Miguel Assis Raimundo, Direito dos Contratos Públicos – Volume 2, AAFDL Editora, 1ª Edição, 2022 p. 435-439
[6] Jorge Andrade d Silva, Código dos Contratos Públicos Anotado e Comentado, Almedina, 6ª Edição, 2017, p. 618
[7] Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, 1987, p. 662
[8] A prossecução do Interesse Público como princípio orientador no contrato administrativo de concessão, Juliana Castilho Bittencourt, Dissertação de mestrado, 2006, p. 17
[9] Pedro Moniz Lopes e Maria Teresa Capela, Comentários ao Código dos Contratos Públicos Volume II, AAFDL Editora, 5ª Edição, 2024, p. 33
[10] Pedro Moniz Lopes e Maria Teresa Capela, Comentários ao Código dos Contratos Públicos Volume II, AAFDL Editora, 5ª Edição, 2024, p. 36
[11] Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo Volume I, Lex, 1999, p. 126
[12] Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo Volume I, Lex, 1999, p. 128
[13] Artigos 73º, 181º, 182º, 183º, 184º, 185º, 186º e 187º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas
[14] Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, Almedina, 2ª Edição, 2009, p. 207-221
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